Pintura abstrata e um pouco caótica

Estão todos errados sobre as redes sociais!

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O título não é um click bait.

Apesar de existirem redes sociais online há muito tempo, estou nelas desde 1994, até bem pouco tempo, em torno de 2011, o alcance delas era pequeno e os estudos praticamente inexistentes inclusive por falta de massa crítica.

Decidi escrever sobre a minha experiência, tanto como habitante de redes sociais, quanto como alguém que as estuda, ainda que não cientificamente, mas que tem sido contratado para ajudar empresas a entender antropologicamente o que está acontecendo.

A bibliografia é um pouco restrita, mas tentarei citar alguns bons estudos.

Um ponto de partida

Ao ouvir o podcast Rádio Escafandro percebi que finalmente temos alguns estudos objetivos que servem como ponto de partida. O episódio é o 114 – Por que você continua nas redes? Se você lê em inglês recomendo o estudo do entrevistado Lonardo Bursztyn que está na página do episódio.

E o ponto de partida é a constatação de que um percentual muito grande, em torno de 40 a 60% dos usuários dependendo da plataforma social comercial mediada por algoritmos, preferia que as redes não existissem se isso fosse uma possibilidade.

Uma advertência para aquelas pessoas que, como eu, habitam a Internet Social desde o século passado: não se irritem com a falta de menção ao que a socialização online já foi um dia e ainda é em regiões como o Fediverso. Éramos e continuamos sendo nicho, mas voltarei a isso mais abaixo com uma abordagem mais geral.

Pode ler esse post sem ter ouvido o episódio do podcast, mas recomendo fortemente que você dedique um tempo a isso: as redes sociais online estão irremediavelmente embrenhadas nas nossas realidades online e offline. Nos influenciam para o bem e para o mal.

Separar os conjuntos é necessário

Apesar de muita gente séria, culta, especializada, competente e muito bem intencionada esteja estudando o fenômeno da sociedade hiper conectada essas pessoas estão lidando com uma área academicamente muito recente e, igualmente importante, com poucos nativos que viram a cibercultura se formar e se tornar parte inseparável até de quem sequer conecta na Internet, afinal o online constrói pauta para muita coisa do “offline”, que talvez nem exista mais, mas essa é outra história.

É como estudar as nações originais sem ter na academia pessoas originárias dessas culturas. Não são muitos os habitantes digitais que decidiram seguir carreiras acadêmicas na antropologia e, claro, um habitante digital não fala por todos os outros.

Temos visto, então, uma tendência a reunir coisas muito diferentes em um saco só: Instagram, Facebook, X e TikTok, para citar as mais faladas atualmente, são muito diferentes ainda que sejam todas plataformas sociais comerciais moderadas por algoritmos.

O objetivo delas é bem semelhante: manter os usuários em seus domínios e coletar seus dados para vendê-los individual ou coletivamente para anunciantes, mas os métodos são bem distintos, a eficácia bem diferente, o que se percebe no estudo citado lá no Rádio Escafandro que mostra que, na amostragem de acadêmicos, 60% dos usuários do TikTok preferiam que ele não existisse contra 40% dos do Instagram. O nível de toxidade (e para isso recomendo de novo o podcast) é diferente.

Um conjunto muito importante, você, dinossauro cibernético deve estar gritando, sempre é esquecido e por isso farei um tópico só para ele.

As redes sociais online nasceram não comerciais

De certa forma entrei tardiamente no ciberespaço social porque muita gente trocava emails e participava de grupos na Usenet muito antes de mim, que comecei pelos BBS em 1994. Pouco depois foi o IRC que dominou a sociedade online.

É necessário lembrar também que a capacidade social do homo sapiens provavelmente é um dos fatores que garantiu sua sobrevivência enquanto outros homo se extinguiam: homo sapiens sempre formarão grupos sociais.

Ainda é necessário defender outro ponto que não é consenso: Internet é um lugar (post de 2008). Se é um lugar nós formaremos redes sociais nele. É natural da nossa espécie.

O que produziu o boom dos espaços online para socializar foram redes sociais cujo modelo de negócio nem era um modelo de negócio (IRC, Usenet) ou era a criação de espaços de socialização (BBS). Ainda as primeiras plataformas criadas por empresas (Friendster, Multiply, MySpace, Orkut e até Facebook) passaram muito tempo sem um modelo de negócios.

Primeiro elas tinham que se tornar “o lugar onde todo mundo estava” (mais uma vez recomendo o podcast lá do começo) porque o que dá valor a uma rede comercial é você e a maioria das pessoas que você conhece estarem lá.

Ainda hoje existem redes sociais online não comerciais como as dezenas de milhares de instâncias do Fediverso (já linkei lá para cima) e até mesmo em blogs como esse, cuja função é, no máximo, criar reputação para o blogueiro, mas muitas vezes o objetivo é mesmo ser útil e devolver um pouco para o mundo.

Então já temos aí duas categorias muito diferentes de redes sociais: comerciais mediadas por algorítimo (ou mídias sociais para usar uma expressão mais familiar) e não comerciais ou redes sociais.

Mas quando falamos em redes ou mídias sociais também sempre falamos em telas, que são novamente colocadas todas no mesmo saco.

O que são “telas”?

Raramente artigos sobre vício, dependência, adicção ou compulsão por telas classificam os tipos de telas.

Jogar, ler livros, ver filmes, programas educativos, fazer videoconferência, escrever, pintar, editar vídeo ou áudio é tudo a mesma coisa?

É meio… muito óbvio dizendo assim, mas até mesmo no meio acadêmico vê-se estudo recomendando o tempo de tela para crianças sem classificar os tipos de telas.

Pessoalmente acho que o tempo de tela para plataformas sociais comerciais nos modelos atuais, jogos de azar disfarçados de jogos de entretenimento e outras telas deviam ser simplesmente proibido. Até para adultos heheheh!

Se vamos falar em dependência por redes sociais ou por telas temos que identificar e classificar muito bem os tipos nocivos por projeto e nocivos para esse ou aquele tipo de perfil, afinal, se a tecnologia não foi projetada para viciar (como um livro), então por que as pessoas estão se viciando? Porque estão sim!

O vício comportamental sempre existiu, mas agora temos uma tela por onde toda forma de conteúdo não físico pode fluir, então é ali que as pessoas suscetíveis a algum vício comportamental buscarão seu objeto de consumo ou que a consumirá.

Então de onde vem o vício?

Os vícios comportamentais são uma área de estudo ainda muito nova e tenho aqui algumas sugestões um tanto anedóticas, é verdade, mas coletadas em umas 4 décadas lidando empiricamente com meus vícios e de outras pessoas já que, sei lá por que, as pessoas têm mania recorrer a mim para suporte emocional.

Temos alguns pontos de espectro neurodivergente que são memeticamente pré-dispostos a vícios comportamentais, é claro. Hiperfoco. Quem tem sabe bem como é! E temos descoberto que neurotipicidade provavelmente é tão arbitrária quanto heteronormatividade e todos estamos em algum ponto do espectro “neuroatípico” e, portanto, com alguma propensão a vícios comportamentais.

No entanto, tirando os casos mais extremos, tenho a forte impressão que estamos nos viciando em séries, livros, jogos, plataformas sociais não comerciais sem algoritmos (as comerciais com algoritmo são programadas para viciar, né?) porque… bem… porque a vida tá uma merda @:-[=] (emoji rindo sem graça e de franja. Não resisti!).

O vício pode estar nos salvando?

Enquanto pensava nesse post lembrei dessa fala da Jane McGonigal: Gaming can make a better world. Vou até embutir aqui:

Precisamos de “epic wins”

Recomendo o livro dela também.

O ponto-chave é que, de acordo com ela, a realidade está quebrada e talvez os jogos sejam o caminho para consertá-la. Depois muitos jogos foram mercantilizados atrapalhando bem a possibilidade de usá-los com esse fim, mas permanecem dois pontos que devemos considerar.

Primeiro que a realidade está mesmo quebrada! A nossa civilização sabe como deter as mudanças climáticas, como levar alimentos, moradia e cultura para todas as pessoas, como erradicar a maioria das doenças, como resolver a crise energética e muitos etc. Mas estamos elegendo políticos que nadam nos pântanos da negação da realidade enquanto bilionários mimados se empenham em alagar ainda mais esses pântanos destruindo até o futuro dos próprios negócios. Aqui vamos considerar apenas que a humanidade está passando por uma doença social coletiva.

A questão é: a realidade está quebrada e jogos, séries, fandoms, redes sociais online e offline, podem ser os únicos espaços onde temos esperanças de encontrar realização, de atingir um “epic win!”.

A humanidade morre quando as pessoas perdem a esperança (não é exatamente a frase, mas acho que se aplica):

G’Mork – Fantasia e esperança

Ainda ontem uma amiga publicou nos stories dela a história de um jovem casal que se conhecia online há dois anos e a moça fez uma surpresa indo encontrá-lo depois de 24h de vôo.

Mesmo contaminadas por algoritmos e usadas para torcer os vieses da sociedade, as plataformas sociais comerciais mediadas por algoritmos estão provendo a experiência do contato humano para muita gente.

Claro que elas precisam ser regulamentadas pelo estado (que anda fraco, tadinho, contra o lobby de corporações de trilhões de dólares, mas consegue avanços porque a sociedade continua encontrando caminhos para se unir) e outras formas de sociedade online devem coexistir ou até mesmo (é o que acho melhor) substituir as plataformas comerciais.

Pode parecer impossível, mas isso é uma ilusão produzida pela prisão invisível que ameaça a civilização.

A humanidade já saiu de situações muito piores e com muito menos ferramentas! Nós superaremos esse desafio também!

Foto de Daniele Levis Pelusi na Unsplash

Reações no Fediverso

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