Silueta em sala escura diante de uma grande tela.

As “telas” e redes sociais contra a civilização

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Olha, nem estou sabendo por onde começar.

A aba com a entrevista na DW ficou aberta umas três semanas aqui no meu navegador. Era uma entrevista com um psicólogo que vê risco de retrocesso para a humanidade por causa do vício em telas. O único dado que ele informa é que um estudo no Reino Unido indicou que 51% dos jovens gostariam que as redes sociais nunca tivessem existido.

Isso não é nada novo. Em 2009 eu mesmo já escrevi Redes sociais são a boca do inferno? reagindo à proibição em SP do uso de ferramentas sociais em telecentros.

Quem nasceu naquele ano já está com 13 anos e não faltam educadores, pais, políticos, psicólogos e até sociólogos que parecem acreditar que o contato com “telas” faz mal e tentam restringi-los. Pelo jeito não está dando certo…

A propósito de que “telas” está se falando? De cinema? TV? É o mesmo que falar que o problema da humanidade são as janelas. Também escrevi sobre isso em 2020 e 2021: Porque pela 1ª vez os filhos tem QI menor que dos pais? (diz isso para quem tem que explicar no WhatsApp para os mais velhos que a Terra não é plana) e em A geração digital é mais burra?.

Estou fazendo essa introdução para contextualizar e mostrar que não é de hoje que penso nisso apesar de não ser um acadêmico. O meu lugar de fala é do nativo. Vivo online desde meados da última década do século passado.

No entanto nem preciso usar a minha experiência pessoal.

Na entrevista da DW (e na maioria dos textos que criticam as “telas” e redes sociais) é declarado que as pessoas encontram nos jogos e nas relações online espaços para escapar das suas frustrações, para criar identidades de que se orgulhem ou pelo menos lhes façam sentir bem.

É sério que, depois de constatar isso, a conclusão é que as “telas” e interações online é que são o problema?

Seguindo por esse raciocínio os antidepressivos e as séries, filmes ou livros levinhos são a causa da nossa insatisfação com a vida.

Mas, pera lá que as “telas” e as redes sociais tem problemas sim! Alguns até são apontados na entrevista da DW, mas vamos organizar isso melhor!

Por que as pessoas estão fugindo da realidade?

Antigamente eu sempre perguntava às pessoas “Você gostaria de viver séculos jovem e saudável?”. Sempre eram pessoas do meu meio, que tinham vidas confortáveis, com bastante tempo para curtir a vida fora do trabalho. A resposta “pelo amor de deus, não!” era tão frequente que parei de perguntar. E isso foi antes das “telas”.

Sim. Vou falar mal do capitalismo, mas não sou anti-capitalista, pelo contrário, creio que, qq que seja o sistema dos próximos 100 anos, será capitalista.

O modelo atual de capitalismo produz frustração de diversas formas que não acho necessário listar aqui. Basta parar para pensar uns minutos que a maioria das pessoas lendo esse post pensará em meia dúzia de coisas frustrantes que aceitam apenas porque parece que “sempre foi assim e sempre será”.

É inútil tirar das pessoas suas rotas de escape sem mudar as estruturais sociais, políticas, econômicas, culturais, educacionais, familiares etc.

Não tem como uma pessoa LGBTQIA+ (e no + vamos incluir todo mundo que é normativa, mas tem o mínimo de empatia e sente angústia pelo preconceito sofrido por outras pessoas) não precisar de uma via de escape!

Lembro inclusive da guilda de que eu fazia parte no World of Warcraft, que era um porto seguro para quem sofria preconceito. O meio gamer é bem preconceituoso…

Para falar na sedução das realidades virtuais temos que partir dos problemas da realidade offline, de famílias desestruturadas pela fome, pelo preconceito, pela propaganda que devora nossas identidades culturais, pelo marketing político que nos polariza. É um vasto conjunto de nódulos geopolíticos, sociais e antropológicos.

Tenho indicações preciosas de fontes para entendermos isso:

  • O Joio e o Trigo e seu podcast Prato Cheio falam sobre o ataque predatório da indústria do alimento contra a nossa alimentação e cultura alimentar. Talvez esse seja o melhor ponto para iniciar a jornada para entender por que a realidade está tóxica;
  • Quando a doença é normalizada estamos diante da doença da normalidade e o Normose é de longe (e de perto) o melhor ponto para começar a entender a sociedade do controle.
  • Recomendo também o meu post A prisão invisível que ameaça a civilização (e a você também).
  • Para entender objetivamente o quadro geopolítico contemporâneo tenho que indicar o podcast Xadrez Verbal. Os episódios são longos, mas excelentes, e o site tem artigos e destaques mais curtos.
  • Fica de olho nas minhas indicações no Memeroll (tenho que bolar uma estrutura melhor para caber mais coisa)

Mas a realidade virtual realmente é perigosa…

Mas agora vamos imaginar uma pessoa que não precisa fugir de nada, cuja vida é confortável, que pode se dedicar exclusivamente a atividades que adora.

É… Tô descrevendo aqueles tais 1% que tem fortuna virtualmente ilimitada… Era para qualquer pessoa poder optar por uma vida assim. Uma civilização próspera deve garantir essa possibilidade.

Esquece isso e vamos considerar essa pessoa hipotética, inclusive sem as inseguranças que afligem inclusive quem tem fortuna ilimitada.

Essa pessoa seria imune às redes sociais? Ao TikTok?

Francamente. Duvido.

Nossa mente sente prazer ao receber informação, ao ser estimulada.

O meu TikTok é repleto de cientistas, professoras, artistas, filosofia e gente focada em representatividade e diversidade. É o que me estimula. O dos filhos de um casal de amigos praticamente só tem dancinhas.

Nossa mente também é vulnerável a estímulos emocionais, principalmente os que causam um senso de perigo, de urgência. É uma questão evolutiva de sobrevivência.

Some a isso o deep learning e o aprendizado de máquina recebendo o seguinte comando: mantenha as pessoas aqui o máximo de tempo possível e, de preferência, com vontade de gastar dinheiro.

Pronto. Está criada a máquina de triturar almas em que as Redes Sociais se tornam e a relação direta da influência dos algoritmos em suas linhas do tempo (time lines ou for you dependendo da linguagem ou tribo).

Na entrevista da DW, que ficou tão lá no começo do post que quase esqueci dela, chega a ser sugerido que “as empresas precisam…”

Então. Elas não farão nada além de procurar maximizar seus lucros a menos que a gente passe a viver sob outro modelo sócio-econômico e isso não vai acontecer nas próximas décadas. Esperar que elas se auto-regulem a favor do bem estar seja individual, seja coletivo e, muito menos ainda, a favor da democracia, diversidade etc. é tolice.

A bola está com quem tem alcance mais coletivo como quem estuda a antropologia, a sociologia, a psicologia humanas. Está com os governos (e isso é um problema porque a influência das corporações sobre eles é astronômica – volte para O Joio e o Trigo e o Normose no tópico anterior). Está com as ONGs, coletivos civis, contigo, comigo.

Estabelecer limites e novas diretrizes que devem reger os algoritmos, não vejo outro jeito, tem que ser um esforço coletivo de formiguinha em blogs como esse que atingem umas poucas centenas de pessoas e de coletivos com uma esfera de transmissão bem maior.

E, claro, depende dos multiplicadores primordiais: a mídia. Por isso me preocupa muito quando vejo entrevistas como essa na DW, que pega uma fatia ínfima do problema e nem chega a analisá-la com profundidade.

E a mídia, gente?

Fiz um tópico só para ela porque penso que tem um papel extremamente poderoso na catalização das transformações que precisamos fazer e que também é mais fácil e rápido reduzir a influência sobre ela do capital corporativo que sequestra as estruturas políticas no planeta inteiro.

Temos que trazer de volta para a sociedade o compromisso da grande mídia, mas isso dá um post que sequer estou pronto para escrever, entretanto é algo que pode ser feito.

Ainda mais importante é fortalecer a mídia independente lembrando que o mesmo capital de grandes fundos de investimento que compram governos compram cientistas e veículos de mídia aparentemente independentes.

No entanto poucas centenas de colaboradores conseguem manter um pequeno veículo de informação. Umas poucas milhares são capazes de manter um jornal de porte razoável sem depender de propagandas.

No início desse século achei, erradamente, que a transformação podia germinar no marketing, hoje me parece que a mídia independente (como as que citei dois tópicos acima) estão fazendo um ótimo trabalho a ponto de desmascarar esquemas de corrupção em governos e setores que a mídia hegemônica não se interessa em tocar. Aliás, temos visto até ações que começam com informantes solitários que entregam terabytes de documentos vitais para diversas fontes jornalísticas independentes obrigando as “dependentes” a se juntar à onda.

Então é política?

Se você pulou lá do começo para cá achando que eu ia politizar a influência e problemas das redes sociais e “telas”… Claro! Tudo passa pela política a menos que não exista civilização e sim apenas tribos de pessoas caçadoras-coletoras com algumas centenas de integrantes e mesmo assim…

Ah! E se desligarmos a Internet?

O pessoal gosta do livro Sapiens, que acho muito tendencioso e prefiro De Primatas a Astronautas do Leonard Mlodinow que traz o mesmo conteúdo sem tentar influenciar nosso viés em direção a uma visão positivista.

Os dois livros mostram como a civilização só aconteceu por causa da descoberta – ou o desenvolvimento – da agricultura, mas ao mesmo tempo isso foi bem ruim gerando problemas laborais, disseminação e surgimento de doenças.

Seria melhor voltarmos a ser caçadores-coletores? Para a nossa felicidade e bem estar, talvez… Só que não vai acontecer.

Além disso a civilização nos colocou no caminho para criar vidas mais instigantes, mais saudáveis e duradouras. Não só isso! Qualquer planeta sem uma civilização está fadado a morrer (assunto para outros posts).

Tenho certeza que em 300 anos olharemos para esse período identificando o início de uma nova forma de civilização sem a qual teríamos sucumbindo e o estabelecimento de uma rede global de comunicação e de organização social livre de limites territoriais, culturais ou mesmo ideológicos, essencial para o amadurecimento da humanidade.

A Internet (com I maiúsculo porque é uma lugar como África ou Terra) é inevitável.

Isso não quer dizer que vou sugerir jogar uma criança com 8 anos no metaverso. Não sou eu que vou definir com que idade ou de que forma as pessoas devem ser levadas a caminhar pela Internet. Nem você. O que precisamos é de especialistas que estudem isso e nos ajudem a definir o momento e o jeito como em tempos passados quando nossas crianças saiam da segurança da tribo para aprender os caminhos da floresta com os mais velhos e experientes que muitas vezes não eram sua família de sangue.

Se você quer acompanhar seus infantes nessa jornada é bom você também aprender os caminhos do ciberespaço para ajudá-los a caminhar em segurança.

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Photo by Adrien Olichon on Unsplash


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